AS
DÁDIVAS DA DEUSA HÉCATE
O dia 13 de agosto era uma data importante
no antigo calendário greco-romano, dedicada às celebrações das deusas Hécate e
Diana, quando lhes eram pedidas bênçãos de proteção para evitar as tempestades
do verão europeu que prejudicassem as colheitas. Na tradição cristã comemora-se
no dia 15 de agosto a Ascensão da Virgem Maria, festa sobreposta sobre as
antigas festividades pagãs para apagar sua lembrança, mas com a mesma
finalidade: pedir e receber proteção. Com o passar do tempo perdeu-se o seu
real significado e origem e preservou-se apenas o medo incutido pela igreja
cristã em relação ao nome e atuação de Hécate.
Esta poderosa Deusa com múltiplos atributos
foi considerada um ser maléfico, regente das sombras e fantasmas, que trazia
tempestades, pesadelos, morte e destruição, exigindo dos seus adoradores sacrifícios
lúgubres e ritos macabros. Para desmistificar as distorções patriarcais e
cristãs e contribuir para a revelação das verdades
milenares, segue um resumo dos aspectos, atributos e poderes da deusa Hécate.
Hécate Trivia ou Triformis era uma das mais antigas deusas
da Grécia pré-helênica, cultuada originariamente na Trácia como representação
arcaica da Deusa Tríplice, associada com a noite, lua negra, magia, profecias,
cura e os mistérios da morte , renovação e nascimento. “Senhora das
encruzilhadas” – dos caminhos e da vida – e do mundo subterrâneo, Hécate é um
arquétipo primordial do inconsciente pessoal e coletivo, que nos permite o
acesso às camadas profundas da memória ancestral.
É
representada no plano humano pela xamã que se movimenta entre os mundos, pela vidente
que olha para passado, presente e futuro e pela curadora que transpõe as pontes
entre os reinos visíveis e invisíveis, em busca de segredos, soluções, visões e
comunicações espirituais para a cura e regeneração dos seus semelhantes.
Filha dos Titãs estelares Astéria e Perseu,
Hécate usa a tiara de estrelas que ilumina os escuros caminhos da noite, bem como
a vastidão da escuridão interior. Neta de Nyx, deusa ancestral da noite, Hécate
também é uma “Rainha da Noite” e tem o domínio do céu, da Terra e do mundo subterrâneo.
“Senhora da magia” confere o conhecimento dos encantamentos, palavras de poder,
poções, rituais e adivinhações àqueles que A cultuam, enquanto no aspecto de
Antea, a “Guardiã dos sonhos e das visões”, tanto pode enviar visões
proféticas,
quanto alucinações e pesadelos se as brechas individuais
permitirem. Como Prytania, a “Rainha dos mortos”, Hécate é a condutora das
almas e sua guardiã durante a passagem entre os mundos, mas Ela também rege os
poderes de regeneração, sendo invocada no desencarne e nos nascimentos como
Protyraia, para garantir proteção e segurança no parto, vida longa, saúde e boa
sorte. Hécate Kourotrophos cuida das crianças durante a vida intrauterina e no
seu nascimento, assim como fazia sua antecessora egípcia, a parteira divina Heqet.
Possuidora de uma aura fosforescente que brilha na escuridão do mundo
subterrâneo, Hécate Phosphoros é a guardiã do inconsciente e guia das almas na transição,
enquanto as duas tochas de Hécate Propolos, apontadas para o céu e a terra,
iluminam a busca da transformação espiritual e o renascimento, orientado por Soteira,
a Salvadora. Como deusa lunar Hécate rege a face escura da Lua, Ártemis sendo
associada com a lua nova e Selene com a lua cheia. No ciclo das estações e das fases
da vida feminina Hécate forma uma tríade divina juntamente com: Kore/Perséfone/Proserpina/Hebe
– que presidem a primavera, fertilidade e juventude -, Deméter/Ceres/Hera
regentes da maturidade, gestação, parto e colheita – e o Seu aspecto Chtonia,
deusa anciã, detentora de sabedoria, padroeira do inverno, da velhice e das
profundezas da terra. Hécate Trivia e Trioditis, protetoras dos viajantes e
guardiãs das encruzilhadas de três caminhos, recebiam dos seus adeptos pedidos
de proteção e oferendas chamadas “ceias de Hécate”. Propylaia era reverenciada
como guardiã das casas, portas, famílias e bens pelas mulheres, que oravam na
frente do altar antes de sair de casa pedindo Sua benção. As imagens antigas colocadas nas
encruzilhadas ou na porta das casas representavam Hécate Triformis ou
Tricephalus como pilar ou estátua com 3 cabeças e 6 braços que seguravam suas
insígnias: tocha (ilumina o caminho), chave (abre os mistérios), corda (conduz
as almas e reproduz o cordão umbilical do nascimento), foice (corta ilusões e
medos).
Devido à Sua natureza multiforme e misteriosa
e à ligação com os poderes femininos “escuros”, as interpretações patriarcais
distorceram o simbolismo antigo desta deusa protetora das mulheres e
enfatizaram seus poderes destrutivos ligados à magia negra (com sacrifícios de animais
pretos nas noites de lua negra) e aos ritos funerários. Na Idade Média, o cristianismo
distorceu mais ainda seus atributos, transformando Hécate na “Rainha das bruxas”,
responsável por atos de
maldade, missas negras, desgraças, tempestades, mortes de
animais, perda das colheitas e atos satânicos. Estas invenções tendenciosas
levaram à perseguição, tortura e morte pela Inquisição de milhares de “protegidas
de Hécate”, as curandeiras, parteiras e videntes, mulheres “suspeitas” de serem
suas seguidoras e animais a Ela associados (cachorros e gatos pretos, corujas).
No intuito de abolir qualquer
resquício do seu poder, Hécate foi caricaturizada pela tradição patriarcal como
uma bruxa perigosa e hostil, à espreita nas encruzilhadas nas noites escuras,
buscando e caçando almas perdidas e viajantes com sua matilha de cães pretos,
levando-os para o escuro reino das sombras vampirizantes e castigando os homens
com pesadelos e perda da virilidade. As imagens horrendas e
chocantes são projeções dos medos inconscientes masculinos
perante os poderes “escuros” da Deusa, padroeira da independência feminina,
defensora contra as violências e opressões das mulheres e regente dos seus
rituais de proteção, transformação e afirmação.
No atual renascimento das
antigas tradições da Deusa compete aos círculos sagrados femininos resgatar as
verdades milenares, descartando e desmascarando imagens e falsas lendas que
apenas encobrem o medo patriarcal perante a força mágica e o poder ancestral
feminino. Em função das nossas próprias memórias de repressão e dos medos
impregnados no inconsciente coletivo, o contato com a Deusa Escura pode ser
atemorizador por acessar a programação negativa que associa escuridão com mal,
perigo, morte. Para resgatar as qualidades regeneradoras, fortalecedoras e
curadoras de Hécate precisamos reconhecer que as imagens destorcidas não são
reais, nem verdadeiras,
que nos foram incutidas pela proibição de mergulhar
no nosso inconsciente, descobrir e usar nosso verdadeiro poder.
A conexão com Hécate
representa para nós um valioso meio para acessar a intuição e o conhecimento
inato, desvendar e curar nossos processos psíquicos, aceitar a passagem
inexorável do tempo e transmutar nossos medos perante o envelhecimento e a morte.
Hécate nos ensina que o caminho que leva à visão sagrada e que inspira a renovação
passa pela escuridão, o desapego e transmutação. Ela detém a chave que abre a
porta dos mistérios e do lado oculto da psique; Sua tocha ilumina tanto as
riquezas, quanto os terrores do inconsciente, que precisam ser reconhecidos e
transmutados. Ela nos conduz pela escuridão e nos revela o caminho da
renovação. Porém, para receber Seus dons visionários, criativos ou proféticos
precisamos mergulhar nas
profundezas do nosso mundo interior, encarar o
reflexo da Deusa Escura dentro de nós, honrando Seu poder e lhe entregando a guarda
do nosso inconsciente. Ao reconhecermos e integrarmos Sua presença em nós, Ela
irá nos guiar nos processos psicológicos e espirituais e no eterno ciclo de morte
e renovação. Porém, devemos sacrificar ou deixar morrer o velho, encarar e
superar medos e limitações; somente assim poderemos flutuar sobre as escuras e
revoltas águas dos nossos conflitos e lembranças dolorosas e emergir para o
novo.
Texto Mirella Faur
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