O
mito de Deméter e Perséfone
“Uma
filha, jovem e muito amada, é raptada de perto da sua mãe por um poderoso
governante, conhecido pelos seus atos malvados. A mãe desesperada sai à procura
da filha e descobre que o rapto tinha resultado de um acordo entre o supremo
chefe religioso e o raptor, sendo que o primeiro era o pai da jovem e o
segundo, seu tio materno. Determinada a buscar justiça, com a revolta e a dor
devastando sua vida, a mãe inicia um longo e eficiente protesto contra as autoridades,
que resulta na volta da filha, traumatizada, mas viva e forte o suficiente para
transmutar a sua dolorosa vivência, aceitar e cuidar do seu filho, concebido na
escuridão da sua prisão.”
Este
relato - de um fato comum no nosso cotidiano atual - descreve a trama mítica de
uma antiga história grega, que deu origem a um complexo ritualístico pagão, iniciado
no segundo milênio a.C. e praticado durante pelo menos 1500 anos, até mesmo
após o advento do cristianismo.
A mãe descrita no drama era Deméter, a deusa dos grãos, cujas dádivas eram
essenciais à sobrevivência humana; a filha era a donzela Kore, raptada por
Hades, o Senhor do Mundo subterrâneo e que retornou como Perséfone, a “Rainha
do Mundo dos Mortos”. O drama encenado e consagrado pelos “Mistérios Eleusínios”
não representava apenas a
felicidade do reencontro e a
recuperação de uma mãe e filha após um trauma, mas a visão transcendental da
morte e do renascimento, simbolizada pela volta de Perséfone do mundo subterrâneo
e sua transformação em Brimo, “Senhora dos Mistérios”, grávida de Brimos, o
filho da luz concebido na escuridão.
Para os
povos antigos este mito era a vívida e real dramatização do conflito e da
oposição entre vida e morte e sua conciliação final pela aceitação e
transcendência. A Morte aparece como o raptor e violentador da vida, que
irrompe de repente das profundezas do mundo escuro e desconhecido, arrancando e
levando consigo não apenas velhos e doentes, mas também ceifando vidas jovens e
promissoras. A dor e o desespero humano perante as perdas, são retratadas no
luto e na revolta da Mãe Divina, que segue um caminho longo, difícil e
tortuoso, saindo da raiva, do ódio e desespero para confronto, luta e a busca
de uma solução, culminando com a aceitação e a transmutação das forças do caos
e da morte pela iniciação nos Seus Mistérios. O mito das deusas Deméter e
Perséfone, que deu origem aos Mistérios Eleusínios - celebrados por todos aqueles
que falavam grego e não tinham cometido nenhum crime - preencheu uma universal
e eterna necessidade humana: ultrapassar o terror perante a morte e nutrir a
esperança no renascimento. A
importância simbólica dos Mistérios foi resumida pelo poeta Homero nesta
frase:”Feliz é aquele que dentre todos os homens vivenciou os Mistérios. Aqueles
que não foram iniciados, nem deles participaram, não irão usufruir da mesma
sorte quando vão morrer e mergulhar na tenebrosa escuridão”. O poder sagrado
dos Mistérios era tanto, que os antigos gregos acreditavam que, sem a sua celebração
anual, a vida iria se tornar insuportável e não apenas a Grécia, mas toda a
humanidade iria sucumbir.
No
início do mito, Kore , alegre e despreocupada estava colhendo flores, quando
ficou atraída por uma estranha flor (o narciso), sem saber que ela era consagrada
a Zeus e Hades. De repente, Hades apareceu em sua carruagem preta saindo das
entranhas da terra e a pegou àforça, levando-a para seu reino, a fim de fazê-la
sua consorte, sem buscar o consentimento dela ou da mãe. Ninguém ouviu os
gritos de Kore além de Hécate, da sua gruta, e de Hélios, que tinha presenciado
o rapto.
Deméter,
desesperada e sem saber o que tinha acontecido com Kore, saiu do Olímpo e iniciou
uma busca incessante por ela,
auxiliada por Hécate e
perguntando a todos sobre seu paradeiro. Entristecida e furiosa por não achar
sua amada filha, Deméter retirou suas dádivas e bênçãos da humanidade, o que
levou à aridez da terra, à seca e à fome. Preocupado com a carestia dos
humanos, que pararam de fazer seus sacrifícios e oferendas aos deuses, Zeus
enviou Helios para convencer Deméter a parar de chorar e se lamentar, aceitar
Hades por ser um poderoso e rico genro (além de ser seu irmão), permitir à
filha se tornar mulher e não mais mantê-la dependente de si. Apesar desta
intimação, Deméter não aceitou ser coagida, pelo contrario ficou enraivecida
com a conivência de Zeus, pai de Kore, com o rapto, e continuou a
busca, mantendo-se firme na sua
recusa de devolver a vida à terra. Disfarçada em uma mulher idosa e após uma
longa peregrinação, Deméter foi parar na cidade de Elêusis, na corte real, onde
após alguns contratempos revelou a sua condição divina, ensinou os segredos da
agricultura e deu ao povo a dádiva dos grãos, aconselhando a construção de um
templo em Sua homenagem, para que nele fossem celebrados os Seus Mistérios.
Zeus acabou cedendo perante a dor de Deméter e as preces dos seres humanos e
enviou Hermes para trazer Kore - agora transformada em Perséfone- de volta para
a sua mãe; o encontro das duas deusas é o ponto alto do mito, chamado heuresis,
assinalando o fim do sofrimento, o triunfo de Deméter em resgatar sua filha e a
volta da abundância para a terra. Porém, antes dela partir, Hades deu-lhe (ou a
obrigou) para comer algumas sementes de romã, considerada a “fruta dos mortos”,
além de ser um símbolo da fertilidade, fato que selou a sua união e a obrigou a
voltar anualmente para o mundo subterrâneo, lá passando um terço do ano como consorte
de Hades e “Rainha dos Mortos”, os restantes dois terços acompanhando sua mãe
no mundo superior, como deusas da vegetação.
O mito
do rapto de Perséfone e do desespero de Deméter representa o esforço coletivo
de uma antiga cultura para enfrentar, mitigar e transcender o medo e o dilema humanos
‘ perante a inexorabilidade da morte. Porém, ao mesmo tempo, ele descreve um
evento histórico acontecido milhares de anos atrás, que ainda
repercute na nossa existência
até hoje. O rapto de Kore e o afastamento forçado da sua Mãe Divina retratam a
usurpação e assimilação das religiões centradas no culto à Deusa do Sul da
Europa antiga, pelas forças patriarcais invasoras, vindo do Norte e Leste
europeu, trazendo consigo o poder da espada e os cultos dos deuses guerreiros.
Deméter e Kore pertenciam às milenares tradições nativas matrifocais europeias,
enquanto Zeus e Hades faziam parte da hierarquia patriarcal posterior às
conquistas.
Ao
longo de alguns milênios a Nova Religião, com seus deuses dominantes e
hierárquicos, se sobrepôs e depois assimilou mitos e símbolos da antiga
tradição geocêntrica da Mãe Divina. Em vários mitos esta assimilação foi
descrita e representada nas cenas de rapto, estupro, dominação e subordinação
das deusas por deuses, que as transformaram em esposas ou amantes submissas ou
filhas dóceis servindo aos seus propósitos. Desta maneira, o mito de Deméter e Perséfone
pode ser interpretado como um drama descrevendo tensões e oposições históricas,
religiosas, sociais e culturais, uma vívida demonstração dos conflitos de valores
e conceitos entre o Masculino e o Feminino arquetípico.
O
imaginário e a dinâmica deste mito podem ser interpretados por duas
perspectivas opostas: pelo prisma da permanência milenar dos valores
matriarcais ou como a escalada e o triunfo do patriarcado invasor,
estabelecendo uma nova ordem religiosa e social. O ângulo depende dos
conceitos, necessidades e compensações psicológicas de quem o interpreta,
enfatizando alguns elementos e omitindo outros.
Na
visão matriarcal – que é mais fidedigna ao significado original - a ênfase está
no poder transformador do Feminino, o ponto central sendo a relação positiva
entre mãe e filha e excluindo o elemento masculino, que aparece de forma
violenta e usurpadora rompendo este elo. A Deusa prevalece neste drama, como
Mãe que resgata a filha dos braços do invasor e do reino da morte; como Filha
ela transforma o usurpador, absorvendo na sua matriz o elemento masculino,
gestando, transformando sua energia e dando à luz o filho, com uma nova forma
de ser e agir. Neste processo, a transformação de Kore em Perséfone e a
presença de Hécate ao lado de Deméter, confirmam a supremacia das faces
integradas da Deusa Tríplice como filha, mãe e anciã.
Na
visão patriarcal o tema central é a ascensão do poder masculino, que se
apropria de elementos e atributos da Deusa e rompe para sempre os elos
matrifocais. Deméter é vista como uma figura negativa, neurótica e possessiva,
enquanto Hades é o libertador da filha ingênua de uma dependência materna
limitante, despertando-a sexualmente (o rapto visto como uma ”iniciação“),
tornando-a consorte e rainha e abrindo novos horizontes para a sua atuação.
Assim que a deusa se torna mãe do filho do conquistador, termina a supremacia
da Mãe e Filha e é preparado o caminho para o nascimento da Nova Religião, em
que se honra por algum tempo a dupla divina Mãe e Filho, substituídos depois
pelo domínio do Pai e Filho.
Este
enfoque explica o predomínio dos comentários e das teorias patriarcais modernos
- históricos e psicológicos -, que muitas vezes distorcem ou omitem aspectos do
mito original, para validar valores e conceitos que fortalecem as estruturas patriarcais.
O nosso
mundo atual enfrenta tanto o medo da morte - no sentido literário ou psicológico
– quanto as manifestações nefastas e destrutivas do poder patriarcal. A riqueza
mítica e a relevância no nível psicológico e comportamental não se limitam
apenas aos períodos ou culturas que lhes deram origem. Assim como Jung demonstrou
nas suas obras, os antigos padrões míticos, os temas e os dramas, bem como os
símbolos arquivados no inconsciente coletivo aparecem e se manifestam nos
sonhos, fantasias, criações artísticas, histórias das vidas e dos
relacionamentos humanos contemporâneos. Mesmo que a sua origem e significados
sejam ocultos ou enigmáticos para a nossa compreensão, eles podem ter um grande
impacto emocional sobre nós. Este impacto é a marca sutil de um arquétipo, que
atua no nosso campo astral e emocional, influenciando nosso comportamento e
forma de agir ou reagir, mesmo que a nossa razão ou conhecimento intelectual
não alcancem seu significado. Cada imagem ou padrão arquetípico pode se
manifestar de forma sutil (nos sonhos ou emoções) ou no nível racional (na dinâmica
dos relacionamentos pessoais ou coletivos). Esta manifestação dualística é
importante ao estudar o mito de Deméter e Perséfone, vendo a manifestação dos
personagens envolvidos (Deméter, Kore, Perséfone, Hades) como sendo aspectos,
personas ou sombras de uma mesma mulher; ou
interpretar o drama no contexto
de uma relação entre duas mulheres (mãe e filha, irmãs, parentes, amigas,
parceiras, terapeuta e cliente, mestra e discípula).
No
entanto, devemos levar em consideração a visão que os povos antigos tinham
sobre os mitos, que eles viam como representações de uma realidade espiritual,
compatível com as suas crenças e práticas religiosas, os deuses sendo figuras
multifacetadas da dimensão espiritual. A deusa Deméter não era apenas uma
simples mãe (de uma filha e dos grãos), mas uma deusa tríplice, contendo os
aspectos de Chloe (a donzela da primavera) e de Cthonia (a anciã do mundo subterrâneo),
todos associados ao ciclo da vida vegetativa. Os seus ensinamentos eram os dons
que a própria Natureza dava aos homens: como plantar, colher, seguir os ciclos
naturais e das estações. A vida física não era oposta ao espírito, as vicissitudes
do corpo e da idade respeitadas como reflexos dos processos naturais. Aquilo
que acontecia na Natureza também se passava na vida humana. O fim do ciclo de
vida de uma planta era o paradigma da morte humana; a semente abrigada na terra
escura germinava e brotava, podendo frutificar (assim como Perséfone se tornou
mãe), depois definhava e apodrecia.
Mas ao
se tornar composto, ela enriquecia e revitalizava o solo e desta morte fértil
nasciam novas sementes, que germinavam,
floresciam e frutificavam, a
vida contida no fruto sendo liberada na sua morte. Manifestava-se assim o poder
da Anciã, que recicla, sem parar, a morte para reiniciar e continuar o permanente
ciclo da vida.
Ver-se como parte da Natureza, aceitar a dependência humana
das Suas forças, participar no eterno ciclo de transformação da vida em morte e
novamente em vida, proporcionava aos povos antigos a vibrante e prometedora visão
do destino humano. Os mortos eram”plantados” na terra e chamados de “povo de
Deméter”(Demeteroi), ou cremados para acelerar a transformação, suas cinzas
sendo entregues também à terra, para que a sua decomposição e fertilização do solo
proporcionasse o desabrochar de uma nova vida. Na Natureza tudo é reciclado e
modificado, nada permanece estático ou fixo, a única constante sendo a mudança
que é a assinatura da continuidade. Não existe um processo linear, nem um
começo ou um fim, nem a eternidade da vida ou da morte, por isso a
transformação era a essência e a base das crenças espirituais pagãs.
Para compreendermos de fato a profundidade simbólica e a
complexidade do mito grego de Deméter e Perséfone, devemos
perceber e aceitar a riqueza e fluidez
dos conceitos míticos e a sua atuação na nossa vida, procurando nos sintonizar com
os ciclos naturais, aceitando as oposições, mudanças, contrariedades, conflitos
e paradoxos que são inerentes à natureza humana.
Texto: Mirella Faur